O berrante

- Joguei fora o meu berrante.

- Você não fez isso?

- Fiz. Nunca mais toco berrante. Não quero mais.

- Não acredito! Você é o melhor tocador que eu conheço. Por que isso?

- Parei de comer carne.

- Ah não! Endoidou?

- Comecei a ter dó do bicho a cada pedaço de bife mastigado. Até que parei de vez.

- Dó do bicho?

- Sim. Eu só comia porque ignorava a morte do bicho.

- Ignorante você está sendo agora. Todos os bichos matam outros bichos para comer. É a cadeia alimentícia. É natural. É de Deus.

- É de Deus e do gado que segue o seu berrante rumo ao matadouro.

- Meu irmão trabalha no frigorífico, passa o dia matando boi e faz a melhor costela no bafo que eu conheço. É Matador e comedor de bicho. Sem dó.

- E toca um berrante como ninguém.

- Com certeza. Mas você toca melhor do que ele. Não tem pra ninguém!

- Tocava. Não toco mais.

- Ele também não. Desde do maldito dia que o gado estourou e matou aquele menino.

- Mas isso faz tempo. Foi antes dele trabalhar no frigorífico.

- Sim. Ele foi para o frigorífico depois dessa história. Não quis mais saber de tocar gado e nunca mais encostou no berrante. Que nem aquela música do menino da porteira.

- Ele jogou o berrante fora?

- Não. Tá pendurado na parede da sala. Um chifrão bem em cima do sofá.

- Não é chifre. É corno.

- Mesma coisa!

- Não. Chifre é Veado que tem. Boi tem Corno. No chifre do Veado passa sangue. Se cortar sangra. E o corno do Boi é oco. Por isso é que serve para fazer Berrante.

- Dependendo da vaca os berrantes podem ser bem grandes...

- O corno cresce durante toda a vida do boi. Ele não troca nunca. Parece unha. Só que bem mais resistente.

- Grandes e resistentes para poder tocar o gado por muito tempo. Sem dó.

- O chifre do veado cai de tempo em tempo. Cresce outro. Renova.

- Mas não serve.

- O que serve é a ignorância do gado. Se soubesse para onde o berrante está o levando, deixaria de acreditar no que ouve. Seria o estouro libertário dos bifes!

- O que tá estourando é a minha fome. Tá na hora de parar. Saco vazio não para em pé.

- Nada vazio para em pé.

- Justamente. Desce primeiro que eu desço atrás.

Estavam em cima do andaime. Passei embaixo e ouvi a conversa. Não resisti. Saí antes do segundo descer. Senti fome também. Parei no bar da esquina para comer uma coxinha. Tinha um berrante. Na parede.