O espaço

— Os caras gastaram o privilégio de ir ao espaço por dez minutos e ficaram a maior parte do tempo de costas para a janela! Trocaram a vista da terra pela lente da câmera que os exibia para a rapa de seus habitantes que não tiveram o mesmo privilégio. Ficaram brincando de gravidade zero entre eles, dando piruetas e jogando bolinhas um para o outro, ao invés de olhar o mundo lá fora.

— E o que você tem com isso?! Cada um olha para onde quiser.

— Fiquei aflito com eles. Como conseguiram não olhar para fora?!

— Ficou é com inveja deles!

— Gravar o vídeo foi mais importante!

— Hoje em dia é isso. Mais vale uma foto do momento do que o momento em si. Esse é o nosso tempo. Você tem que se costumar. Não vai mudar isso.

— Mas posso me indignar!

— Antes a gente só via os japoneses filmando e fotografando tudo o tempo todo. Agora é todo mundo.

— Mas os japoneses que a gente sempre viu fotografando tudo o tempo todo apontavam suas câmeras para paisagens, monumentos, obras de arte, prédios históricos, lugares importantes, cenas diferentes... nunca vi um japonês daquela época tirando foto de si mesmo o tempo todo. Mas hoje até eles ficam na frente da Monalisa para mostrar aos outros que a viu de perto. Isso se realmente viu!

— Foto da Monalisa tem de monte na internet. Para que fazer mais uma? O que interessa é você perto dela.

— Interessa para quem?

— Para todo mundo.

— Todo mundo quem?

— Todo mundo todo mundo.

— E o que interessa para você?

— Para mim?

— Para você todo mundo.

— Sei lá. Cada um é cada um. Ninguém é igual a ninguém.

— Para onde você olharia se fosse junto com eles para o espaço?

— Nem penso nisso porque sei que jamais irei. Isso é coisa de bilionário.

— Pois é, bilhões para uma Live com a terra ao fundo como cenário!

— Não é para qualquer um.

— Estavam entre o céu e a terra e não olharam nem para um nem para outro. Esqueceram que é exatamente ali que há muito mais coisas do que sonha a nossa vã filosofia. 

— Filosofia de quem?

— De todo mundo.

— Você acha os caras vão chegar lá e ficar pensando em filosofia?

— Não é pensar. É viver.

— Quer uma dica? Cuida da sua vida e deixa o resto viver e olhar o que quiser! Não adianta ficar aflito com isso.

— Pois é, tem gente que sai de casa e sempre enxerga a lua, enquanto outros saem e só enxergam o cocô do cachorro no meio da calçada.

— Só que são os que ficam olhando para a lua que acabam pisando no cocô.

— Estou cansado. Você entende isso? Cansado?

— Eu também. Hoje foi difícil.

— Falo de sempre. Não de hoje.

— De sempre quando?

— De sempre sempre.

Conversavam na calçada da biblioteca municipal. Ouvi (não resisti) lá de dentro, através da janela. Só escutei, não levantei para ver. Preferi não olhar.