Luiz Antonio Sampaio Gouveia

Isabel e o 13 de Maio

Coluna de Luiz Antonio Sampaio Gouveia

Isabel e o 13 de Maio

Publicado em: 24 de maio de 2023 às 18:04
Atualizado em: 24 de maio de 2023 às 18:18

Matéria produzida a convite da
redação do jornal “O Estado de S. Paulo
em 13 de maio de 2023 (“Estadão Online”)

 

Importante ter o Brasil sido reconhecido na Organização dos Estados Americanos (OEA)como “racista”, mas importa-nos afirmarmos em todo o cotidiano um pensamento antirracista. Depois da Nigéria, somos a nação com a maior população negra do mundo. Essa afirmação vive momento peculiar, a criar espaços de poder e de presença para o negro em nossa sociedade. Mas é preciso ponderação, a ver sermos um país de imigrantes onde, em síntese, vimos todos construindo uma nação – e isso passa por um enfoque verdadeiro de nossa história, em que estão Isabel e o 13 de Maio.

Isabel é uma figura do quanto possa a humanidade respeitar. Sua memória, contudo, sofre deturpação histórica: revogou-se, recentemente, uma medalha que levava o nome dela, para substituí-la pelo Prêmio Luiz Gama, a ser concedido a quem se destaca na defesa dos direitos humanos. Jamais se pode contestar Luiz Gama. Mas Isabel merece igualmente destaque.

Capistrano de Abreu referiu-se à Lei Áurea como a primeira lei social do Brasil. São dois artigos! Um extinguiu a escravidão; o outro revogou disposições contrárias. Exceção feita a toda lei brasileira, que mais se perde em disposições transitórias, a não abolir privilégios que nos diminuem.

Isabel rompeu as amarras que o Império tinha, de início, com a praça de tráfico negreiro do Rio de Janeiro. Desde a Independência e até a cessação do absurdo comércio humano. Ao contrário disso, mesmo hoje muitos protagonistas das causas sociais recuam diante do patrimonialismo que domina nossa pátria. Isabel não! Pôs sua causa humanitária à frente de interesses econômicos poderosos. Reconheceu-a o papa Leão XIII, protagonista dos direitos sociais, outorgando-lhe a Rosa de Ouro, homenageando os grandes fautores desta luta.

Não se pode adulterar nossa história como se fosse uma ficção. Zumbi criou-se num símbolo de liberdade. Isabel sepultou absurdos, pois a escravidão ainda existe atualmente, em locais de trabalho com verdadeiras senzalas, reduzindo seres humanos ao sequestro monstruoso deque falou Joaquim Nabuco. Como seria, então, sem a Lei Áurea?

Castro Alves cantou a seara a crescer, pelo sangue que caía, do escravo, sobre o rosto do algoz, a ponto de esse sangue se transformar em vingança feroz, do escravo contrariamente ao algoz. É um poema que se refere a uma justa revolta. O fato é que houve ações libertárias de negros em face da escravidão. Porém difusas e sem condão nacional. Resistências contrárias à escravidão, mas reações localizadas em espaços restritos do trabalho escravo, sem conteúdo de ideologia ou vinculação à libertação de uma raça, tomada em seu coletivo. Como a Lei Áurea fez!

Everardo Dias escreveu sobre movimentos operários no início do século 20. Eram movimentos que lutavam contra a exploração de europeus no Brasil. Socialistas ou simplesmente anarquistas tratados a ferro e cárcere. Também o historiador Edgard Carone abordou o tema. Falar, então, de luta social somente em quilombos e movimentos de escravizados é equívoco. Essa luta é de todos os que em todos os tempos trabalhamos. Nosso Estado foi edificado também por negros, superantes de uma segregação que existe, sim, como restrição à cor. Como o Marquês do Paraná (Honório Hermeto Carneiro Leão), como o Visconde de Jequitinhonha, fundador do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), berço da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O empreendedorismo brasileiro, na economia do Segundo Império, encontrou no Barão de Guaraciaba, um negro, banqueiro, um dos homens mais relevantes do empresariado brasileiro. Nas letras, Machado de Assis; em Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, expressões maiores de nossa música; e em Teodoro Sampaio e nos irmãos Rebouças, negros que despontaram. Sem falar, no Direito, em Evaristo de Moraes, pai e filho, Pedro Lessa, ministro do Supremo Tribunal Federal, como Joaquim Barbosa e Antônio Ferreira Cesarino, sem desprezo a outros que, se fosse para relacioná-los, não seriam suficientes os espaços para estas letras.

Afro-brasileiros, cabe-nos enfrentar e superar o racismo e edificar uma pátria estruturalmente antirracista, que escrevemos em nossa Constituição o racismo como um crime capital. É preciso esforço para que a norma constitucional seja realidade. Há empenhos para que todos os negros se elevem à cidadania, postos ao relento das preocupações do Estado, no dizer de Joaquim Nabuco. A libertação dos escravos os deixou perplexos a caminho de um destino incerto, é verdade.

Cabe correção desse desvio. As cotas sociais são os mínimos esforços neste caminho para fazer justiça. Negros devem agir como Rosalyn Park, que desafiou o racismo no Alabama, em 1957. Não cedeu lugar a um branco, num ônibus, como lhe impunha a lei. Negros ostentam dignidade. Mas não podemos ser um país de castas estruturadas em complexos de cor. Podemos cair numa discussão sobre colorismo repudiável. É preciso assimilar a história como ela é, e não como a queremos ver.

Nisso não podemos transigir, para unir os sonhos em Zumbi com a realidade histórica de Isabel.


Luiz Antonio Sampaio Gouveia

Luiz Antonio Sampaio Gouveia

Santa-cruzense, Sampaio Gouveia é advogado graduado pelas Arcadas e especialista em Finanças e Contabilidade (pela EAESP/FGV) e em Direito Penal Econômico (pela GVLAW/FGV), mestre em Direito Público (Constitucional) pela PUC-SP, Conselheiro e Orador oficial do IASP, membro do Consea/Conjur/Fiesp, procurador-jurídico da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, entidade em que é irmão Mesário e remido, conselheiro da Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho, mantenedora da Faculdade de Medicina da Faculdade de Misericórdia de São Paulo. É membro do Instituto Brasileiro de Recuperação de Empresas em Crise. Foi conselheiro-seccional da OAB-SP e da ASP. CEO Sampaio Gouveia Associados


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