Publicado em: 02 de julho de 2022 às 03:22
Tenho observado a crescente divulgação de uma ideia, ou de forma mais completa, de um posicionamento ideológico, que defende a falta de necessidade de estudos formais (em escolas e universidades) para se ter uma vida “bem-sucedida”. Citam-se exemplos de bilionários famosos que, supostamente, teriam abandonado uma formação universitária para criar sua empresa, ou “empreender”, como está na moda dizer. Dessa forma, a escolarização é apresentada como algo que apenas atrasaria a vida de um jovem que está ansioso por ter seu “lugar ao sol”.
O primeiro problema aí está na ideia de que o sol brilhe para todos: a luz das oportunidades mal chega para aqueles que estão sob a sombra da pobreza, da discriminação racial, do machismo, do capacitismo, da discriminação contra as sexualidades não-heterossexuais, entre outras estruturas de exclusão presentes na sociedade capitalista. Essa posição ideológica defende que a sociedade não apresenta desigualdades e que se há pessoas em situação de exclusão, isso se deve apenas a suas capacidades individuais (ou à falta delas). Isso se comprovaria na suposta constatação de que aqueles que galgaram posições de maior sucesso, o fizeram apenas por mérito próprio, dispensando até mesmo o ensino formal.
A disseminação dessas ideias e dos discursos que as sustentam é tão ampla que fica difícil acreditar que não haja algo de sistemático nisso. Podemos observar agenciamentos que se efetivam em diversos meios de comunicação, desde os mais tradicionais, como a televisão, até os recentes, com sua fluidez e capilaridade, como os aplicativos de vídeos curtos.
Na luta pela hegemonia ideológica da meritocracia, o ensino formal é acusado de não contribuir efetivamente para o desempenho profissional. Além disso, coloca-o como espaço de “doutrinação ideológica” - como se fosse possível a alguma forma de transmitir informações enunciado concreto ser isenta ideologicamente!
De fato, as mídias de consumo passivas, como televisão e rádio, determinam o que nos é transmitido. Já com a Internet, temos maior autonomia. Porém, aí também se encontra a disputa pela hegemonia ideológica, pelo domínio do conteúdo disponível a partir de publicidade ou dos arranjos feitos pelos algoritmos.
O que realmente incomoda aqueles que defendem o sistema de poder vigente é que a escola e a universidade, mesmo com todos seus defeitos e limitações, é um espaço de construção de conhecimento, que vai muito além do que é oferecido pelos meios de comunicação. Mesmo se consideramos a escola como aparelho ideológico de Estado, voltado à reprodução das relações de poder da sociedade capitalista e à inculcação de uma visão de mundo coerente e subserviente à essa sociedade; ainda assim, dentro dessa instituição, encontramos a possibilidade de superar a dominação, explorando suas contradições. Ao fornecer acesso à cultura acumulada, através de uma transmissão sistemática, fornecem-se não somente os elementos que garantam o domínio do capitalismo, como também as ferramentas críticas que nos permitem pensar esse sistema e enxergar além do mundo que ele nos impõe.
É na escola que se tem contato, também, com um universo de conhecimentos que o meio familiar não consegue oferecer. Não se trata apenas das “matérias” ensinadas; a convivência com pessoas de outros meios culturais, classes sociais, crenças, fornece meios para uma socialização mais ampla, na convivência com a diferença.
Desprezar o ensino formal em prol de um aprendizado “direto” é permanecer restrito à cultura familiar e àquilo que os meios de comunicação consideram que atenda aos interesses de seus proprietários e acionistas. A escola não é isenta quanto a isso, mas traz muito mais ferramentas de conhecimento, o que produz a contradição, permitindo que se vá além do que ela mesma socializa.
Psicólogo (CRP 06/96910), Doutor em Psicologia pela Unesp. Escreve quinzenalmente. Contato: (14) 99850-0915
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