Pascoalino S. Azords

Vacinado contra a solidão, e só

Coluna de Pascoalino S. Azords

Vacinado contra a solidão, e só

Publicado em: 30 de julho de 2022 às 06:53

Amyr Klink demorou cem dias entre o céu e o mar para cruzar o Atlântico Sul num barco a remo. Antes de construir seu barco, o Paraty, Amyr se formou em tempestades, em edifícios de águas altas e banheiras calmas onde alguém também pode se afogar. Fugindo do pó da Namíbia, ele veio vindo de volta pra casa. Vazio do medo maior – que é o de não partir – Amyr veio vacinado contra a solidão, e só.

O histórico Paraty de Amyr Klink media pouco menos de 6 metros. Já a distância entre a África e o Brasil passa de 6 mil quilômetros. Esse contraste pode assustar uma pessoa comum, deve assustar uma pessoa normal, mas só reforçou em Amyr a lição que ele aprendeu na sua convivência com o mar imenso: “o mar e seu tão puro professor de geometria” pode tornar minúsculos os maiores problemas e gigantes as menores alegrias.

Durante a construção do barco, para Amyr ele lembrava um tamanco holandês. Quando pronto, porém, além do nome pomposo grafado com ipsilone, o Paraty ganhou o mágico apelido de Lâmpada de Aladim, posteriormente abreviado para “lâmpada”. Podia ter também alguma coisa de uma casca de noz, mas para mim o Paraty se parecia mesmo é com um saco de dormir à prova d’água ou da submersão.

A princípio, Amyr tentou a todo custo construir um barco que não capotasse com as ondas gigantes e as vagas abismais. A tempo, porém, um sábio engenheiro naval o aconselhou a construir um barco reversível, onde tudo viajasse afixado, para que ele pudesse vir capotando da África até o Brasil – deu certo!

O “diário de bordo” da travessia do Atlântico a remo rendeu um livro de 230 páginas, todas elas impressionantes ou assustadoras. Que o remador navegou o tempo todo de costas para o seu destino logo chamou a minha atenção. Que ele não comeu um único peixe durante a viagem quase parece mentira. Que a “traia” incluía um litro de Coqueiro, a histórica cachaça da cidade de Paraty, ainda haverá de merecer um estudo mais sério; afinal, foram 6.500 quilômetros com um único litro de álcool! Mas a felicidade de Amyr ao ver que se aproximava uma grande tempestade chega a ser um insulto para quem só se sente seguro com a água nas canelas. Pois ao término de uma tempestade que durou uma semana, Amyr saiu da sua lâmpada flutuante e anotou: “Não passei nesses sete dias por um momento sequer de monotonia, tristeza ou desespero. Pois nada é mais certo do que a chegada do bom tempo após uma tempestade que parece interminável”.

Depois que aprendeu essa, Amyr só precisou vir remando, remando, remando, para chegar em casa.

 

* Publicada em 02/09/2018 e republicada em 31/07/2022


Pascoalino S. Azords

Pascoalino S. Azords

Cronista, mantém coluna no DEBATE desde 1977


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