Publicado em: 16 de fevereiro de 2021 às 01:02
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 13:06
O pandemônio legislativo e a pandemia
Luiz Antonio Sampaio Gouveia *
Ao atingir o pico de nossa permanente inflação legislativa, justamente com a legislação vigente, a partir da crise sanitária atual, os operadores do direito veem-se envolvidos em um cipoal legislativo, que o português antigo a demonstrar o caráter da confusão, pela semântica, denomina aranzel. Desde a exegese das antinomias, que, pela Lei 14.010, de junho de 2020, até a Lei 14.030, de julho de 2020, e pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, permitem e não permitem, ao mesmo tempo, assembleias societárias, associativas e condominiais virtuais, dificultando a vida operativa dessas entidades ao extremo, até o ponto em que a imprecisa redação legislativa e a pobreza dos vetos, no geral, vão paulatinamente destruindo a unidade compreensiva do Direito brasileiro.
As mais diversas dúvidas vão surgindo, como por exemplo: quando entra em vigor uma lei publicada com vetos? Ou os vetos, se derrubados pelo Congresso Nacional, quando vigem, desde a data em que a lei foi publicada? Ou os dispositivos vetados, depois de derrubados, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, é que passam a vigorar? Se os dispositivos vetados constituem uma nova lei, quando derrubados, como muitos constitucionalistas entendem ser a hipótese, como podem eles ter efeito retroativo? O Congresso Nacional pode resolver estas dúvidas, modulando a eficácia dos dispositivos de Lei cujos vetos as Câmaras derrubaram?
A solução do problema está no Direito Constitucional notadamente na perspectiva do processo legislativo e na interpretação sistêmica e teleológica da questão. Sem perder o contexto da occasio legis, que se não vale para a interpretação futura, pelos mais rigorosos critérios de direito, daqui para frente, vai valer porque a pandemia não será eterna e não se poderá entender a lei sem critérios sociais e econômicos, talvez consequencialistas de interpretação, a ter em conta a circunstância de sua promulgação/publicação.
A barafunda atinge o Direito de Família, das Obrigações, dos Contratos em geral, do Direito Sucessório, Comercial, Empresarial, de Falências e Recuperação Judicial, entre outros. Vou aqui traçar algumas observações sobre o tema.
Um projeto de lei sancionado, promulgado e publicado pelo Presidente da República, obedecido o prazo legal, para tanto, pela Presidência, entra em vigor quarenta e cinco dias após sua publicação (ver LINDB, artigo 1º), imediatamente depois dela, se tanto e assim, nela estiver legislado ou em outro prazo, que nela igualmente se estipular. Se houver sanção parcial, a parte vetada volta para o Congresso Nacional. A que foi promulgada/publicada, já entra em vigor, obedecido o que nela estiver consignado quanto ao prazo de sua vigência.
Os vetos, quando derrubados, são revogados por ato Congressual, que assim se transformam projetos de lei, carecendo de promulgação/publicação pelo Presidente da República. E na hipótese de ele se recusar a este ato, pelo Presidente do Senado ou pelo Vice, se o anterior também não a promulgar e publicar. Este ato, que atribui validade ao dispositivo vetado, é Lei e, como tal, não poderá ter efeito retroativo, por exemplo, até a data em que iniciou a viger a lei em que houve os vetos.
Entretanto, o STF vem decidindo que a parte vetada entra em vigor, se derrubada pelo Congresso Nacional, na mesma data em que entrou em vigor a lei, onde ocorreu o veto. De fato, esta decisão tem em mira a preservação da integridade do espírito da lei e atende a finalidade dela e certamente como apreciadas, em quaisquer e específicas circunstâncias, as exigências do bem comum. Tratando-se de uma retroatividade “in bonam partem”.
Mas o Congresso Nacional, ao derrubar os vetos, não pode acrescentar aos dispositivos de lei restaurados, novas disposições porque se o fizer modulando-os, por exemplo, para ditar o momento e as condições de vigência deles, estará infringindo a regra constitucional do processo legislativo. Porque a entrada em vigor, como, lei da parte de uma lei restaurada, pela supressão do veto que impedira sua vigência, não é consequência de um novo processo legislativo, é, sim, o arremate de um processo legislativo pretérito, que foi frustrado, em sua fase conclusiva pelo veto da Presidência da República.
Convindo lembrar que a modulação de efeitos de uma decisão jurídica, é consequência da Lei 9.868 de 10 de novembro de 1999, que, nas hipóteses de arguição de inconstitucionalidade, no processo objetivo, por seu artigo 27, tanto permite em atenção às razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social.
A regra, pois, é esta: a parte não vetada de uma lei, pelo Presidente da República, entra em vigor, depois de sancionada, promulgada e publicada, imediatamente depois de sua publicação. Quando o Congresso derruba o veto obedecido o rito próprio de consumação do processo legislativo, o dispositivo, que estava vetado, entra em vigor, no mesmo dia em que a lei em parte vetada, ganhou vigência legal. Mantendo-se assim o espírito da lei.
O processo legislativo envolve a rigor o Poder Legislativo e o Executivo. Mas não se pode dizer que ele prescinda do Judiciário, que é quem dá vida à Lei. Trata-se de um processo complexo em que se exprime a essência do mando democrático, no sistema em que a convivência entre poderes é harmônica.
* Santa-cruzense, Luiz Antonio Sampaio Gouveia é advogado, Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, Conselheiro do IASP e CONSEA/FIESP, Irmão mesário e remido da Santa Casa e Conselheiro da Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho, mantenedora da Faculdade de Medicina
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