SOCIEDADE

O professor democrata

Uma reportagem quase fechou o jornal O Furinho, precursor do DEBATE e dirigido por Sérgio Fleury na adolescência. Mas um delegado de ensino salvou a publicação

O professor democrata

O jornalista Sérgio Fleury Moraes, diretor do DEBATE, entrega o prêmio Liberdade de Imprensa ao deputado Miro Teixeira, autor da ação no STF que derrubou a antiga Lei de Imprensa, em 2010. Fleury foi um dos precursores na luta contra a lei, herança da ditadura militar e cuja legalidade entrou em pauta por processos contra o DEBATE que repercutiram em todo o País

Publicado em: 09 de julho de 2022 às 04:00

André Fleury Moraes

O DEBATE nasceu muito antes de ser DEBATE. Seu diretor-proprietário, Sérgio Fleury Moraes, descobriu ser fascinado por jornalismo desde criança. Na infância, recebia diariamente em casa o Estadão — jornal que seu pai, Celso Fleury Moraes, assinava. Na casa do avô, Nelson Fleury, chegava a Folha de S. Paulo.

Para fazer um dinheiro e não deixar ninguém desinformado, Sérgio lia a Folha de cabo a rabo e escrevia um resumo das reportagens da edição daquele dia que julgava mais importantes. Vendia o papel com a síntese das notícias ao pai Celso.

Ao avô, por sua vez, vendia o resumo do Estadão, que também lia da primeira à última página. Criança, mal entendia as reportagens do caderno de economia. Mas insistia na leitura.

Sérgio não sabia, mas a prática não garantia apenas as balas e doces na venda de José Nantes, pai do advogado João Nantes, de Santa Cruz do Rio Pardo, que morreu no início deste ano.

O hábito, na verdade, simbolizava o prelúdio de um jornalista que, corajoso, enfrentaria a ditadura militar e bateria de frente com poderosos sem jamais abaixar a cabeça.

Quando Sérgio já era adolescente, o DEBATE se chamava O Furinho — um pequeno jornal que cobria acontecimentos importantes da cidade.

Como define Fleury, “O Furinho era de vez em quandário” — embora costumasse ser mensal.

Edição do jornal ‘de vez em quandário’ O Furinho, fundado por Sérgio Fleury durante a adolescência; exemplar mostra a antiga ‘Vila do Esqueleto’, hoje conhecida como ‘Bom Jardim’

Em uma de suas edições, O Furinho destacava os pormenores da “Vila do Esqueleto”, uma favela da cidade. Em reportagem, o adolescente relatava o problema das desigualdades numa época em que pouco se falava a respeito. Era 1975, e Sérgio tinha 14 anos.

Mas uma reportagem despretensiosa quase fechou O Furinho.

Sérgio estudava na escola Leônidas do Amaral Vieira. Naquele tempo, durante o intervalo entre as aulas, era permitida a abertura do portão do colégio, que fica em frente à praça São Sebastião. Jovens saíam abertamente para sentar nos bancos da praça e conversar sobre tudo o que fosse possível.

Em outros tempos, retornavam normalmente ao interior do colégio e iam direto às salas de aula. Evasão escolar não era tão comum como hoje

Num dia qualquer, porém, o então diretor da Leônidas, Sebastião Jacyntho da Silva, determinou que os portões ficassem fechados durante o intervalo.

A notícia rapidamente correu à boca pequena dos alunos e chegou, claro, ao adolescente Sérgio Fleury Moraes, que considerou a decisão arbitrária.

Na capa de O Furinho daquela semana estava, então, “a decisão absurda do diretor”. A reportagem dava destaque ao depoimento de vários alunos. Todos, sem exceção, criticavam o fechamento dos portões.

O problema é que O Furinho era impresso nos mimeógrafos da escola Leônidas do Amaral Vieira, que cedia o equipamento ao estudante. Mas nem de longe era um jornal estudantil, uma vez que a condição imposta por Sérgio para ele mesmo é a de que um jornal precisa de liberdade editorial.

Editor e único funcionário de O Furinho, Fleury tinha a liberdade de que precisava para manter seu espírito crítico. Mas a reportagem sobre a decisão do diretor em fechar o portão incomodou.

Irritado com as críticas que recebeu, o então diretor da Leônidas chamou Sérgio Fleury na direção da escola.

— Quem é que autorizou você a publicar isto num jornal da escola? — perguntou o diretor.

— O jornal não é estudantil, senhor. O Furinho é meu. — respondeu Fleury.

— Mas onde é que você o imprime? — insistiu Jacyntho.

— Aqui. O senhor me empresta o mimeógrafo.

A partir daquele momento, Sérgio estava terminantemente proibido de imprimir o jornal nas dependências da Leônidas. Foi o primeiro dos milhares de confrontos com autoridades, que buscam intimidar seus críticos a partir do poder que têm em mãos. Um diretor tem o mimeógrafo, um político tem aqueles que o idolatram, e juízes, a toga . E por aí vai.

Apesar das desavenças com o diretor, Fleury foi à escola no dia seguinte. O inspetor bateu na porta de sua sala de aula e anunciou:

— Sérgio, o delegado de Ensino quer te ver na delegacia ainda nesta tarde.

Todos os alunos sabiam sobre o que tinha acontecido no dia anterior. “Ferrou”, pensou Sérgio. O mesmo raciocínio tiveram os alunos.

Baixo, rechonchudo, sério e definido como um homem de poucas risadas, Gentil Marques Valio, o delegado de Ensino da época, era uma figura que amedrontava quem quer que fosse.

Já diante do delegado, trêmulo e suando frio, Sérgio sentou-se numa cadeira gelada. Numa época em que não havia celular, sequer pôde se distrair enquanto aguardava a bronca que sabidamente tomaria.

— Soube que o senhor redigiu uma reportagem que deixou o diretor Jacyntho muito bravo. É verdade?

— Sim, senhor. É verdade.

— E soube também que você imprimia o jornal no mimeógrafo da escola. E que agora está proibido de fazer isso.

— Isso, mesmo, doutor.

— Pois agora você está autorizado a imprimi-lo aqui na delegacia. Está liberado, pode ir embora.

Anos mais tarde, Gentil se tornaria colunista do DEBATE, do qual foi entusiasta desde o princípio, e também um grande amigo de Sérgio, que viu no delegado que salvou O Furinho um exemplo de alguém verdadeiramente democrata.

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